Christiano Lacorte
Advogado, bacharel em ciências da computação, mestrando em Direito, Estado e Sociedade na UFSC, membro do Grupo de Estudos em Direito Autoral e Informação (GEDAI/UFSC)
No dia 27 de junho de 2010, o jornal O Globo publicou um editorial intitulado “Os perigos da Revisão dos Direitos Autorais”. No texto, o jornal apresenta argumentos contrários à proposta de revisão, focando em uma eventual vontade de regulação por parte do governo e um grande perigo de que se diminua a amplitude da propriedade autoral.
O perigo, porém, é muito maior se a nossa lei de direitos autorais não for discutida, e depois, revista. Perigo de estarmos todos cometendo atos ilícitos ao usar a Internet e, por exemplo, imprimir textos, na íntegra e para uso privado, de artigos que achamos interessantes. Perigo de bibliotecas ou arquivos perderem obras raras que estão se deteriorando por não poderem realizar cópias com o fim de preservação. Perigo de investidores não buscarem novos modelos de negócio condizentes com o cenário tecnológico atual, e que poderiam representar boas oportunidades para autores e usuários de obras culturais, em razão da insegurança jurídica representado por uma lei que apresenta defeitos e lacunas.
O perigo maior, porém, talvez seja o de não a sociedade não discutir, de forma ampla e profunda, um tema que lhe será cada vez mais sensível, face ao contexto atual de amplo acesso às ferramentas tecnológicas que facilitam a criação e a distribuição de obras.
Os resultados de diversos encontros e discussões sobre direitos autorais que ocorreram nos últimos anos merecem ser mais bem conhecidos pela sociedade, para que esta critique e aperfeiçoe as propostas de mudanças apresentadas – especialmente porque todos somos diretamente afetados pela proteção autoral: se há uma norma clara e precisa, ganhamos todos os envolvidos; do contrário, se tivermos uma lei confusa e sem objetividade, perdemos todos.
Nesse sentido, importante traçar algumas considerações sobre os pontos abordados naquele texto do jornal.
1) No citado editorial, há a menção de que “não é apenas mais uma iniciativa de regulação por parte do governo”.
O projeto apresentado não é fruto de um estudo exclusivo do governo, pois diversas entidades e pessoas não ligadas ao governo participaram dos debates para a construção do texto. Claro que órgãos do governo também participaram da discussão para elaboração do texto, e essa participação certamente se reflete em dispositivos da proposta. De qualquer modo, importante o jornal ter apontado um dos pontos com os quais se preocupa – essa é a idéia de uma discussão aberta. Seria ainda mais importante se aquele veículo tivesse indicado de forma mais objetiva essa preocupação, mencionando os dispositivos que deveriam ser excluídos ou modificados, de modo que essa regulação não desejada fosse questionada de modo mais concreto por todos que participam do debate.
Dito isso, a mim fica a sensação, da leitura da norma proposta, que não se apresenta um formato de regulação no sentido de controle do que poderá ou não ser criado, ou mesmo determinações acerca das formas de exploração das obras protegidas pelo direito autoral. O que há é a proposta de uma estrutura que permita ao Estado (não ao governo, e essa diferença é importante) atuar, dentro de limites muito específicos, visando ao equilíbrio das relações de direitos autorais.
Esse papel do Estado não é apenas necessário, mas bastante comum, e é encontrado em diversos países: nos Estados Unidos, há o Copyright Office (cuja missão é[1]: “To promote creativity by administering and sustaining an effective national copyright system”, ou algo como “promover a criatividade administrando e sustentando um sistema nacional de copyright efetivo”); no Canadá, o Copyright Board; na Colômbia, a Dirección Nacional de Derecho de Autor (segundo o site da entidade[2], “Las Sociedades de Gestión Colectiva de derecho de autor o de derechos conexos, están sometidas a la inspección y vigilancia del Estado, por intermedio de la Dirección Nacional de Derecho de Autor”).
A Espanha tem uma estrutura dentro do Ministério da Cultura[3] daquele país denominada “Subdirección General de Propiedad Intelectual” que, em conjunto com o próprio Ministério, tem a competência para propor medidas para garantir a adequada proteção da propriedade intelectual. Há ainda, na estrutura daquele ministério, um órgão colegiado de âmbito nacional (“Comisión de Propiedad Intelectual”) que exerce as funções de mediação e arbitragem atribuídas pela lei de propriedade intelectual daquele país. A Itália também tem uma área no respectivo Ministério da Cultura que trata das questões de Direitos Autorais (a “Direzione Generale per le Biblioteche, gli Istituti Culturali ed il Diritto d’Autore”), em cujas atribuições[4] se encontra a supervisão, juntamente com o Conselho de Ministros, da Sociedade Italiana de Autores e Editores (SIAE).
A importância do equilíbrio nas relações de direitos autorais está justamente na necessidade de que todos, autor, investidor e usuários de bens culturais, tenham seus direitos respeitados, em seus aspectos patrimoniais, morais e culturais. Esse órgão, portanto, não deve ter qualquer fim de ditar os rumos das criações, ou impor medidas de cunhos ideológicos a autores ou investidores. Ele deve servir para apoiar o equilíbrio nas relações de direitos autorais, protegendo, por exemplo, obras caídas em domínio público. E deve servir também em um ponto bastante problemático: a fiscalização das associações de titulares de direitos de autor, cuja falta de transparência na atuação têm apontado na direção de uma necessária vigilância, para que se protejam interesses dos autores e da sociedade.
2) O editorial apontou então que a revisão dos direitos autorais representaria uma possibilidade de redução da “amplitude do respeito à propriedade dos conteúdos e a remuneração de seus produtores”, acrescentando que o estágio de desenvolvimento de uma nação depende do “maior ou menor respeito ao direito autoral”.
De fato, o respeito à propriedade do autor sobre a obra que ele criou é um ponto central da proposta legislativa – e a idéia é aperfeiçoar o modelo existente, de forma aberta, com participação ampla da sociedade, autores e investidores.
A enfatizar apenas que, no cenário tecnológico atual, com acesso mais amplo à Internet e com a possibilidade de uso de recursos como redes sociais, blogs e outros fóruns digitais, a discussão de fato fica ampla. Esse destaque se justifica porque essa possibilidade não ocorreu na discussão da lei em vigência, em que este ponto tão importante foi debatido apenas por uma parte dos interessados na proteção autoral que tinha condições de estar mais próxima do processo legislativo.
O desequilíbrio ficou tão evidente que a Lei 9.610/98 sofre críticas contundentes – e balizadas – desde a sua promulgação. E grande parte dessas críticas reside justamente na falta de respeito aos direitos de propriedade daqueles que criam as obras. Mas não só deles: daqueles que usam tais obras, e até de investidores que, diante da insegurança jurídica de um texto legal ineficiente, acabam adotando posturas conservadoras e deixam de criar novos modelos de negócio que poderiam resultar em um aperfeiçoamento do mercado de obras protegidas pelo Direito Autoral no Brasil.
3) O texto então diz que “o mais pujante sistema produtivo já criado pela Humanidade, em termos de produção propriamente dita e também em inovação (pesquisa e tecnologia)” (?) está fundado na propriedade privada e na segurança jurídica que deve ser prestada aos empreendedores, inventores e artistas para usufruir suas obras.
O editorial também poderia ter sido mais objetivo nesse ponto, indicando os trechos da proposta em que esse desrespeito ocorre. Propriedade privada é direito fundamental e deve ser, sim, respeitada. Claro que não é um direito absoluto, convive com outros direitos, que a limitam ao mesmo tempo em que são limitados pela propriedade, em um mecanismo de equilíbrio.
A proposta deve ter por fundamento um modelo mais atual de proteção, na qual o autor tenha uma força maior nas relações contratuais do que tem atualmente. Esse novo modelo não deve taxar de criminoso quem utiliza obras em situações justificadas de uso livre, como a citada reprodução para preservação. E esse novo modelo deve sim pensar na ampliação da segurança jurídica para aqueles investidores que queiram aplicar em novos modelos de negócio.
Ainda que fosse proposta uma redação que acabasse com diversos direitos de investidores, cabe lembrar que a consulta é pública, e todos podem – e devem – participar para que o texto final a ser encaminhado tenha o equilíbrio necessário para o aperfeiçoamento da proteção autoral no Brasil.
4) O editorial faz então uma sugestão: a de que a proposta de mudanças na legislação autoral seja examinada e debatida com a atenção e profundidades necessárias.
Exatamente! A proposta deve ser minuciosamente examinada por todos, debatida com atenção, seriedade, serenidade e profundidade. O texto proposto está na Internet, e os dispositivos sugeridos devem ser confrontados com os mais diversos interesses, de modo que se obtenha uma proposta madura, fruto dessa análise e desse embate de idéias, interesses e argumentos.
O que talvez seja improdutivo é de antemão, sem um debate profundo e atento, taxar a proposta – e a própria discussão dela – como algo indesejável e perigoso. O que é bastante ruim é que nem se queira o debate sobre o tema. Felizmente esse debate já se iniciou há diversos anos – provavelmente logo após a promulgação da Lei 9.610/98, em razão de essa norma apresentar, desde o início, defeitos e lacunas amplamente documentados em diversas obras sobre Direitos Autorais.
5) O texto do jornal então aponta que o “MinC, no governo Lula, se notabiliza por ser um polo de pensamento dirigista e intervencionista.” Teria sido assim com Gilberto Gil, e assim continuaria com seu sucessor, Juca Ferreira.
Não entro no mérito do juízo de valor apresentado nesse trecho do editorial – até aí, cada um com os seus próprios juízos, e valores.
Cabe apenas ressaltar novamente que, ainda que a proposta tenha sido apresentada pelo Ministério da Cultura, o texto foi resultado de diversos encontros promovidos não apenas por aquele órgão, mas também por outras organizações, como universidades públicas e particulares de grande destaque, como UFSC, USP e FGV, além de diversas organizações da sociedade civil. Esses encontros contaram com a participação de profissionais de destaque da área dos Direitos Autorais, não apenas advogados, mas também artistas, jornalistas, investidores, professores, tanto do Brasil, quanto do exterior.
Ressalte-se ainda – vale a pena repetir – que o texto não foi encaminhado diretamente ao Congresso para trâmite do processo legislativo, mas sim colocado em consulta pública, ou seja, sendo mais explícito: o texto está aberto a todos, de forma clara, para leitura, estudos, análises e discussão, e apresentação de propostas de melhoria.
6) O editorial aborda então a questão da fiscalização das entidades arrecadadoras de direitos autorais: ”Para os mal informados, qualquer coisa que se faça para vigiar o Ecad, sigla, com razão, considerada pelos músicos sinônimo de descaminhos, merece apoio.”
Só este ponto indicado no editorial já seria o suficiente para se propor mudanças na atual lei de direitos autorais brasileira: “Ecad, sigla, com razão, considerada pelos músicos sinônimo de descaminhos” (grifou-se).
Se a entidade central responsável pela arrecadação dos direitos autorais dos músicos é considerada por esses, como disse o jornal, “sinônimos de descaminho”, já há um ponto de grande importância a ser desvelado, em uma discussão séria e profunda, pela sociedade, artistas e investidores.
7) Após mais algumas considerações acerca de possíveis conteúdos ideológicos na proposta, o editorial toca em um ponto central para o interesse daqueles que trabalham com notícias, como o próprio jornal: ”… para o MinC, ‘as notícias diárias que têm o caráter de simples informações de imprensa’ não estarão protegidas pela lei dos direitos autorais. Trata-se de preocupante dispositivo.“
Neste ponto, concordo com o editorial: é um assunto delicado, de tratamento complexo, e que exige mais estudo para que a solução apresentada não vire um problema – novamente, é por essa razão que a proposta está à disposição de todos; para que todos os lados do problema venham a tona, e a solução a ser proposta possa levar em consideração essas facetas.
A lembrar apenas que a lei atual conta com um dispositivo na parte que trata dos limites ao direito autoral que aborda essa questão (artigo 46, I, a), e que tem gerado mais confusão do que ajudado a resolver o problema.
É inegável que a questão dos textos das notícias seja mais bem examinada com a finalidade de se encontrar as melhores condições para a proteção desses tipos de conteúdos – seja ela pelo direito autoral ou não.
8 ) O texto do jornal então aponta o que seria uma contradição: um projeto que visa defender os direitos do autor também pretende ampliar os casos de usos livres, sem a necessidade de autorização do titular dos direitos daquela obra.
Não há, nessa situação apontada, contradição. Os direitos do autor são necessários e devem ser garantidos; estão previstos como direitos fundamentais na Constituição Federal. Da mesma forma, diversos outros direitos fundamentais são elencados na nossa norma constitucional. Todos, inclusive os autorais, devem coexistir, e o único modo que essa convivência ocorra é pela harmonização desses direitos. É essa situação que permite que os direitos autorais sejam limitados por outros direitos e também os limitem.
No caso dos usos livres, atualmente denominados na nossa lei de “limitações aos direitos autorais”, não se trata de mera ampliação, mas de aperfeiçoamento, para a legislação brasileira, das regras previstas na Convenção de Berna, bastante mal implementadas na Lei 9.610/98. Apenas exemplificando alguns problemas atuais: cópias privadas de “pequenos trechos”, sem que ninguém saiba precisar o tamanho destes, gerando insegurança para quem pretende utilizar esse dispositivo; as já citadas cópias com fim de preservação, não previstas na lei atual; a necessidade de tratamento aperfeiçoado para apresentação de obras com fins didáticos.
A questão dos limites aos direitos autorais é também ponto bastante importante da discussão; como destacado anteriormente, existem vários, e essa razão é que torna a discussão pública ainda mais importante e necessária.
9) Ao final do editorial, há a menção de que o acréscimo de cláusulas de reequilíbrio contratual motivados por acontecimentos extraordinários e imprevisíveis poderiam, ao invés de fortalecer, fragilizar os direitos dos autores. Diz o texto ainda “O sucesso inesperado de um livro, por exemplo. Se o conceito tem lógica, colocá-lo em uma lei pela qual o Estado pretende intervir no relacionamento entre produtores e difusores de conteúdos significa estreitar o mercado para os autores, devido à insegurança jurídica criada.“
Este ponto da proposta inclui, na Lei de Direitos Autorais, a previsão de um conceito que já faz parte do Código Civil pátrio (Lei 10.406/02, artigos 478 a 480 – “Livro I – Do Direito Das Obrigações”, “Título V – Dos Contratos Em Geral”, “Seção IV – Da Resolução Por Onerosidade Excessiva”), denominado “teoria da imprevisão”.
Esse instituto, embasado em princípios jurídicos como o da probidade, o da boa-fé e o do não-enriquecimento sem causa, permite que se pleiteie, obedecidas certas circunstâncias excepcionais, a extinção ou revisão do contrato. O vínculo contratual estaria subordinado à continuação daquele estado de fato vigente ao tempo da estipulação – se esse estado muda de forma que se possa crer, com certa precisão, que uma das partes não teria aceitado o negócio se soubesse da possibilidade da ocorrência daquela situação, tornar-se-ia necessário o reequilíbrio. É um instituto amplamente utilizado em outros países, e que não representa a “criação de uma insegurança jurídica”.
Concluindo
Finalizando essas breves considerações, apenas destacaria a importância da mídia nessa discussão da revisão da lei de direitos autorais. Deve-se considerar que a abordagem do tema em editorial de jornal de grande circulação, mesmo que de forma superficial, ajuda a levar o debate ao público.
É importante que esse debate tenha profundidade e seriedade, como o próprio editorial mencionou. Melhor ainda que hoje existam meios para que todos possam manifestar suas opiniões e interesses de forma clara à sociedade. Isso é possível pela utilização da rede; não da Internet, mero – e importante – instrumento, mas sim de uma rede de pessoas que, por meio também da Internet, participam ativamente do debate, tornando-se parte efetiva do processo de definição dos rumos que se pretende dar a temas tão importantes para a sociedade como é o caso do futuro dos direitos autorais.
[1] www.copyright.gov/about.html
[2] www.derechodeautor.gov.co/htm/preguntas.htm#13
[3] www.mcu.es/propiedadInt/CE/InformacionGeneral/Introduccion.html
[4] www.librari.beniculturali.it/genera.jsp?s=40&l=it








Gostaria de comentar a seguinte passagem:
“Todos (os direitos), inclusive os autorais, devem coexistir, e o único modo que essa convivência ocorra é pela harmonização desses direitos. É essa situação que permite que os direitos autorais sejam limitados por outros direitos e também os limitem.”
A harmonização dos direitos não significa que um direito deve ser eliminado em nome de outro direito. O que não se tem percebido é o quanto é autoritária e absurda essa forma de “viabilização” do direito ao acesso à cultura.
O Estado (não o governo) deve promover políticas públicas que efetivem direitos e não castrar o direito do autor de decidir sobre a distribuição de sua obra porque não é competente o suficiente para estimular e viabilizar o acesso à cultura. É só mais um pouquinho de Circo que o governo (não o Estado) está dando ao seu povo.
Eu acho ótimo que se discuta o acesso à cultura, mas por favor menos autoritarismo. Eu estou surpreso como a UFSC, que é um centro de referência de idéias inovadoras libertárias, comprou tão facilmente um discurso governista tão ditatorial.
Olá, Renato!
Meu nome é Christiano, e gostaria de apresentar algumas considerações. Em primeiro lugar, queria te agradecer pelo comentário sobre o texto que escrevi e por participar do debate sobre os direitos autorais, que afetam nossa vida de forma muito mais próxima do que grande parte da sociedade percebe.
Sobre o seu comentário, me permita concordar contigo, pois, do mesmo modo que você, não entendo que a “’viabilização’ de direito ao acesso à cultura” se dê pela desapropriação de bens. Direitos de autor não devem ser extintos para que haja acesso a cultura – na verdade, o meu entendimento é o oposto: somente um direito autoral efetivo para a realidade que vivemos possibilitará que a cultura possa ser criada aproveitando as características desse cenário atual.
Não defendi, no meu texto, que a harmonização dos direitos signifique eliminar a propriedade autoral. Apenas mencionei que esse direito deve ser exercido em consonância com outros – só isso.
Tornando mais claro: não sou contra direitos autorais, muito pelo contrário, defendo esses direitos, pois na minha percepção eles são cruciais para a produção cultural. Acho que o artista deve, sim, ser sempre bem remunerado pelo bem cultural que produz.
O mesmo vale para os direitos conexos – se dubladores estão fora da lei 9.610, essa revisão é um bom momento para valorizar esse trabalho artístico. Se a lei atual coloca muito poder nas mãos de gravadoras, por exemplo, vamos buscar equilibrar para o lado do autor. Se há usos livres e justos permitidos pelas convenções internacionais, vamos discuti-los e, se for o caso, trazê-los para o nosso modelo legal.
Não percebi no texto da proposta – que tem muita coisa boa, mas também muitos dispositivos que podem melhorar (e é isso que se espera com a consulta pública) – o sentido de “eliminar” o direito do autor, ou de “castrar” o direito do autor de decidir sobre a distribuição.
Talvez o ponto ao qual você se refira seja o mecanismo de licença compulsória previsto no texto da minuta. Essa licença compulsória, que certamente merece muita discussão e cuidados, só deveria poder ser utilizada em situações excepcionalíssimas; talvez, por exemplo, no caso de brigas de herdeiros que estejam ocasionando danos irrecuperáveis a obras (sobre esse tema, veja o artigo “profissão Herdeiro”, da revista Época, em http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI155579-15220,00-PROFISSAO+HERDEIRO.html)
Não sei se a sua frase “Eu acho ótimo que se discuta o acesso à cultura, mas por favor menos autoritarismo” se referiu ao meu texto – espero sinceramente que não. No texto abordo a importância de que a sociedade, autores e investidores, tenham a oportunidade de discutir o modelo de proteção autoral que sirva para o cenário atual de criação e uso dos bens culturais produzidos. Autoritário seria não discutir e impedir que essa discussão chegue à sociedade.
Se você se referiu à consulta pública como autoritária, também discordo: autoritário seria apresentar o texto dentro das casas legislativas, sem que a sociedade pudesse discutir antecipadamente a proposta.
Sobre o seu comentário de que UFSC teria comprado “tão facilmente um discurso governista tão ditatorial”, queria dizer que, como membro do Grupo de Estudos Em Direito Autoral e Informação, não “compramos”, nem “engolimos”, nem “defendemos” discursos de ninguém – estudamos os temas de direito autoral, incluindo leis e convenções internacionais, práticas utilizadas na Internet para proteção autoral (como licenças públicas), jurisprudências brasileiras e estrangeiras, modelos de negócios relacionados à exploração econômica de bens culturais protegidos pelo Direito Autoral, e nesse contexto de estudos e discussões é que chegamos a alguns entendimentos (e, normalmente, a mais dúvidas também). A ressaltar que mesmo os posicionamentos dentro do grupo muitas vezes divergem, e é nesse exercício de trazer bons argumentos para os debates é que podemos chegar a idéias “defensáveis”.
Entendo – e, novamente, essa é a minha opinião pessoal – que o papel dos alunos e professores de universidades é estarem abertos ao diálogo e aos debates, buscarem bons argumentos e tentarem entender todas as complexidades que envolvem um problema, para assim compreendê-lo melhor. Os ‘discursos’ ou ‘bandeiras’ podemos deixar para aqueles que têm interesses na preservação dos modelos que estão aí hoje, mesmo que signifique dizer que milhões de brasileiros são piratas criminosos.
Para finalizar essa mensagem , deixo uma frase do jurista Georges Ripert: “quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga, ignorando o Direito”. Nesse caso dos direitos autorais, não deixemos que o Direito continue ignorando a realidade.
[]’s,
Christiano.
Caro Christiano, gostaria de retornar esse contato, primeiramente, me desculpando pela desnecessária generalização do meu comentário. Claro que eu entendo que um grupo de estudo como o GEDAI tem como fundamento a discussão e não a aceitação de idéias.
Acontece que eu tenho acompanhado essa discussão sobre a reforma da lei autoral há alguns anos e cada vez mais eu me convenço de que boa parte dos agentes desse “debate” abraçam bandeiras, ao invés de construir argumentos (isso de ambos os lados).
Eu assisti a uma série de seminários que foram organizados justamente para difundir a idéia de um mundo sem direitos autorais, um deles inclusive tinha o sugestivo nome de “Fórum Livre de Direitos Autorais”, organizado pelo MinC. Do outro lado, vi muitos autores defenderem aos gritos e apenas com argumentos de autoridade a necessidade de manutenção da lei.
Por isso, para resumir minha contribuição para esse debate específico nesse tópico, tentando não assumir bandeiras, eu posso dizer que o autoritarismo a que me refiro reside nas alterações propostas que retirem as prerrogativas morais e patrimoniais do autor sobre a sua obra, ainda que em casos pontuais. Isso porque eu acredito na vinculação moral entre autor e obra e na legitimidade da sua deliberação sobre o acesso a ela. Transferir essa decisão para um agente do Estado não soluciona o problema do acesso à cultura, mas cria uma brecha enorme para o privilégio imoral e ilegal de interesses individuais alheios à criação artística. Eu falo “agente do estado” porque, da forma que está a proposta, a moldura legal nos casos de licença compulsória é bastante larga, o que amplia a discricionariedade dos atos do agente do estado responsável.
Também acredito ser autoritária qualquer tentativa de controle pelo Estado de qualquer força associativa. No caso da música, mesmo que muita gente reclame sem conhecer, o Ecad não é nada mais que um escritório administrativo. Acima do Ecad está a força popular dos compositores. Essa é a única forma que os autores encontraram de fazer valer seus interesses diante do rolo compressor do grande capital.
E quanto às mudança do mundo que afetam o direito, eu sinceramente não acredito que as relações econômicas mudaram tanto apenas pela existência da internet e dos meios digitais de propagação da informação.
Claro que os meios mudaram, mas o trabalho se organiza da mesma forma.
Hoje, as pessoas só baixam informação gratuita porque diversas pessoas estão dispostas a ter um trabalho enorme e gratuito para organizar e disponibilizar essa informação na rede. Por uma impossibilidade natural, a maioria dessas pessoas vai deixar de fazer esse trabalho gratuitamente, principalmente depois de perceberem que muitos estão se aproveitando desse trabalho e fazendo dinheiro com ele.
O próprio mercado se organizará para transforma esse trabalho de apuração da informação em $$. Nesse dia, se não houver um direito que proteja a arrecadação autoral, a integridade da obra e a sua referenciabilidade, os autores perderão os seus direitos sobre sua criação apenas para enriquecer novamente o grande capital (de cara nova).
Muito obrigado pela atenção. Vamos continuar conversando. Estou gostando muito.
Um grande abraço,
Renato Rosa
Ps: Acho justo que você saiba melhor quem é seu interlocutor: Sou advogado especialista em direito autoral e bacharel formado pela UFMG. Sou também músico e compositor, sem qualquer pretensão de ganhar muito dinheiro com arrecadação autoral, rsrs.